A abertura do Festival Vermelhos, realizado pelo Instituto Baía dos Vermelhos, complexo que reúne espaços dedicados à cultura, na noite do dia 5 de julho, teve a presença da São Paulo Companhia de Dança no Teatro de Vermelhos. O grupo artístico da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Governo do Estado de São Paulo, é gerido pela Associação Pró-Dança e além de apresentar uma técnica impecável, possibilitou uma série de reflexões sobre o corpo em movimento e a realidade.
“Essa noite comemora um momento especial. A primeira obra foi da Poliane Fogaça, uma coreógrafa que mora em Salto (SP), ela fala das Veias Abertas da América Latina, das nossas questões sociais, mas ao mesmo tempo com muita alegria, energia e esperança, de que pela união a gente consiga transformar a nossa sociedade”, disse Inês Bogéa, diretora da São Paulo Companhia de Dança.
Esse foi o espírito do primeiro fim de semana do evento realizado em Ilhabela, litoral norte de São Paulo, um sonho do advogado pernambucano Samuel Mac Dowell viabilizado por sua veia empreendedora e artística. Para o presidente do Conselho do Instituto Baía dos Vermelhos, Fábio Magalhães, que também é presidente do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, é um saboroso coquetel de música e natureza.
“Existem vários festivais e está surgindo uma opção muito grande no mundo de você unir a música, dança, enfim, a arte performática com a natureza. E o Samuel é um dos precursores disso no mundo. Essa tem sido uma tendência na Inglaterra, na Itália, em outros campos de artes também como Inhotim e agora no Paraná, que está sendo feito também um parque a céu aberto. Essa integração com a natureza é muito bem-vinda. Eu acho que esse é o pensamento que nós temos hoje, em vez de a gente ser contra a natureza, aquela ideia de que tudo que não é natureza é cultura, agora a gente revê esse conceito, imagina que tudo que é natureza é cultura e que nós somos integrados a ela”, reflete Fábio Magalhães.
Amanda Maria e Leandro Cabral se apresentaram na Sala do Porão, também na sexta-feira à noite. A dupla, que atinge um alto grau de conhecimento e domínio técnico na voz e no piano, aproveitou o tom intimista do espaço para interagir com o público, conversar e contar curiosidades da vida cotidiana e como ela influencia nas composições.
“Eu acho que toda a estrutura de Vermelhos permite que você faça parte do espetáculo junto, desde quando o pessoal tá assistindo lá em cima e quando o pessoal vem aqui pra baixo na Sala do Porão. Então quando chega aqui já tá todo mundo à vontade e a gente gosta dessa reciprocidade porque a música é uma troca, a canção é uma troca , então não adianta a gente escolher nosso repertório: ‘eu vou fazer porque eu gosto’. A gente vai fazer pensando: ‘olha, o pessoal vai cantar junto”, afirmou Amanda Maria, que puxou um coro da plateia para um clássico de Cartola “As rosas não falam”, que contagiou até quem estava trabalhando. Ao término da apresentação, a coordenadora do café de Vermelhos, Bárbara de Paula, e a chefe do balcão da cozinha, Michele Aguilar, fizeram questão de trazer um bolo de presente para Amanda Maria.
“Ah, a gente trouxe um doce, uma cuca recheada com goiabada para parabenizar um pouquinho só esse talento imenso”, contou Michele, emocionada.
A sétima edição do Festival Vermelhos que aconteceu no fim de semana atraiu um público de aproximadamente mil pessoas, que veio de várias partes do Brasil. E também tinha músicos na plateia. O flautista do grupo “Premeditando o Breque”, símbolo da música paulistana dos anos 80, Claus Petersen, estava com a esposa e amigos que se encontraram nos jardins de Vermelhos, sentaram em uma mesa embaixo de uma árvore, com a temperatura em torno dos 18 graus, para brindar com vinho tinto.
“É a primeira vez que venho, também já ouvi falar muito e essa primeira impressão é ótima, é um luxo”, afirmou Claus Petersen. Sua esposa, a arte-educadora Ana Cristina Araújo, achou incrível essa integração com a natureza, música e arte. “Eu acho um privilégio, tô achando maravilhoso”.
A amiga do casal, Sonia Guggisberg , artista visual, que veio de São Sebastião, concorda. “É muito especial a gente chegar aqui nesse lugar incrível, construído impecavelmente, de uma maneira linda, é um privilégio estar aqui, você tem qualidade, gosto de música, de espaço, de arquitetura, de natureza, de pessoas incríveis, é um programa completo.”
No dia 6 de junho, sábado pela manhã, foi a vez de Estefan Iatcekiw se apresentar na Sala do Porão. Ele é pianista considerado um dos seis melhores do mundo, em Moscou, Rússia, no concurso internacional Rachmaninoff. O público que estava mais atrás chegou a se levantar para ver as suas mãos tocarem concertos que muitas vezes chegam a ter mais de 35 mil notas. Estefan Iatcekiw conquistou a todos e tocou um bis com o choro composto por Zequinha de Abreu e imortalizado na voz de Carmen Miranda, “Tico-tico no fubá”.
“É dever de todo músico brasileiro representar o nosso Brasil onde nós formos. Eu toquei um programa majoritariamente russo, mas mesmo assim a minha raiz, meu amor também pela música brasileira tem que ser mostrada, valorizada inclusive no final do concerto, por isso eu gosto de mesclar”, explicou.
À tarde foi a vez da Funmilayo Afrobeat Orquestra apresentar “Afrobeat: Substantivo Feminino”, que celebrou o protagonismo feminino e LGBTQIAP+ no Anfiteatro da Floresta, integrando as referências musicais e culturais negras e a construção de narrativas sobre gênero e raça ao meio ambiente. A orquestra formada exclusivamente por mulheres negras animou a todas as pessoas com um repertório que incluiu artistas como Lijadu Sisters e Sandra Isidore.
No fim da tarde, uma atividade realizada pela primeira vez pelo festival chamou a atenção. O próprio fundador do instituto, Samuel Mac Dowell, entrevistou o músico Egberto Gismonti, que se apresentaria à noite no Teatro de Vermelhos. Samuel Mac Dowell sentado ao lado do artista, na Sala do Porão, fazia perguntas fora do lugar comum, apoiado pelo vasto conhecimento cultural que possui, além da experiência como advogado em direitos autorais. Egberto Gismonti, por sua vez, mostrou que toda a sua força está no caminho que percorre longe do ‘mainstream’. Na plateia formada por fãs do artista, estava o pianista Leandro Cabral, que tocou com Amanda Maria na noite anterior.
“Foi um prazer poder ver o Egberto Gismonti, um gigante da música mundial falando sobre música, falando sobre Tom Jobim, falando sobre mercado atual, mostrou que ele tá muito antenado ao que tá acontecendo no mundo, mas ao mesmo tempo ele se mantém muito fiel aos valores que ele desenvolveu estético e artisticamente durante a vida toda. Isso é uma força pra gente enquanto artista”, afirmou Leandro Cabral.
Enquanto isso, um profissional com trabalho internacional, que afina o piano para Egberto Gismonti há 45 anos, preparava o instrumento com uma técnica que desenvolveu exclusivamente para o artista. Para que o piano soe mais pesado em algumas notas, Guthenberg Padilha Pereira coloca um peso de chumbo.
“Contrapesar é fazer o teclado ficar um pouco mais pesado de uma forma que eu não agrida o piano local. Tecnicamente você tem que furar a tecla e colocar um chumbo, mas eu acrescento um peso atrás com dupla face, colo e quando termina o show eu tiro e jogo fora”, explica o afinador.
Guthenberg é carioca, era um dos afinadores preferidos de Tom Jobim e acredita que se o compositor fosse vivo estaria se apresentando em Vermelhos, mesmo sem gostar muito de viajar, porque amava a natureza.
O domingo, dia 7 de junho, amanheceu nublado, mas o mau tempo não afastou o público. A Sala do Porão recebeu a pianista Karin Fernandes. Assim como Guthenberg, ela acredita que outros compositores, se estivessem vivos, estariam em Vermelhos, como Villa-Lobos e Francisca Gonzaga, que interpretou em seu recital.
“Foi legal demais tocar aqui, primeiro porque o piano é muito bom, porque às vezes a gente super se prepara a gente não consegue fazer as coisas. Eu já peguei pianos por aí que não estavam tão bem. Eu acho que esse projeto do Samuel é uma coisa incrível, ele sabe aproveitar e ter essa generosidade de abrir tudo que ele tem aqui para as pessoas e para cultura”, declarou Karin Fernandes.
A engenheira civil, Claudia Paulino, e o namorado Caio Lemos, coordenador de arte e produção visual, assistiram todo o recital de Karin Fernandes na Sala do Porão de mãos dadas, em clima romântico.
“Ilhabela tem tudo a ver com arte. É impressionante como Ilhabela é rica culturalmente, mas às vezes as próprias pessoas, a própria população não valoriza tanto. Acho que Vermelhos é uma oportunidade para a gente prestigiar mais ainda a arte e eu fiquei muito feliz em vir aqui conhecer o espaço e de ter essa oportunidade também”, comemorou Claudia.
Na Sala do Porão, depois das apresentações, o piano permanece aberto. Oportunidade para Rafael Virgilio de Oliveira, 23, engenheiro de software, que veio de Cornélio Procópio, cidade próxima de Londrina, no Paraná, para assistir ao festival. Apaixonado por piano, ele estuda o instrumento e aproveitou para tocar um pouco ali mesmo.
“É um evento que aproxima a música do público, né? Acho que isso que falta em muitos lugares hoje em dia, essa possibilidade da gente fazer parte realmente ali com a música”, explicou Rafael.
Enquanto Rafael tocava, o administrador Danilo Oliveira Vilela, pai da Aurora, 8, e Benício, 5, junto com uma amiguinha dos filhos, Tarsila, se aproximou do piano de cauda para mostrar às crianças que dentro havia cordas.
“Para eles entenderem um pouco o funcionamento, como é que o instrumento de fato funciona né, às vezes fica só o som e eles não sabem nem que o piano tem cordas. É super gostoso compartilhar isso com eles”. Danilo gostou muito da oportunidade e as crianças adoraram.
Parte de um programa de reciclagem de Ilhabela também pode ser visto em Vermelhos. Em um espaço atrás da bilheteria, junto com artistas que vendiam artesanato local, Rosana Pauluti, mostrava sua arte feita com bitucas, dentro do Projeto Ilhabela Sem Bitucas, que tem 180 pontos de coleta de bitucas de cigarro na ilha.
“Eu participo da feira de artesanato lá da vila, no centro histórico, vendo meus objetos lá. E desde 2022 eu venho para cá, em Vermelhos apresentar meu trabalho”, conta Rosana.
O primeiro fim de semana foi encerrado domingo à tarde, com a “Cantata do Café”, de J.S.Bach, interpretada pela USP Filarmônica, orquestra ligada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP. Na história, senhor Schlendrian insiste com a filha, Liesgen, para que pare de tomar café, bebida que ela adora. A regência foi de Rubens Russomanno Ricciardi e solos de Raquel Paulin (soprano), Daniel Umbelino (tenor), e Luis Felipe Souza (barítono). O inusitado da programação foi ter no palco, sentados nas mesas de um café imaginário, como figurantes, o próprio Samuel Mac Dowell e seus convidados. Entre eles, Rubem Siqueira Bianchi, morador aposentado de Ilhabela e frequentador assíduo de Vermelhos.
“A Sala do Porão, o Teatro de Vermelhos, o Anfiteatro da Floresta, a forma com que o pessoal de Vermelhos recebe os artistas estabelece uma relação que é diferente. Estar aqui e ver as pessoas tão de perto e tão encantadas, nós nos encantamos de estar vendo pessoas trazendo coisas boas pra gente, mas sentir que eles também estão encantados por serem bem recebidos aqui é uma coisa que não tem preço”, finaliza Rubem.
O Festival Vermelhos continua no próximo fim de semana. A programação completa pode ser conferida no site https://vermelhos.org.br
Foto: Bianca Moreira/Divulgação